domingo, 10 de outubro de 2010
Pessoa hoje
Pessoa hoje
Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.
Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?
Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.
Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.
Fernando Pessoa
segunda-feira, 4 de outubro de 2010
Adaptação e sobrevivencia
É possível adaptar-se a dores cruéis, sofrimentos atrozes, decepções frias; aprender a absorver baques, a encaliçar a alma, a envernizar sentimentos. Os humanos também se adequam para sobreviver. Na cruel tarefa de não desaparecerem na evolução, aprendem a acomodar-se aos ambientes hostis; assim, criam anticorpos existenciais, resistências espirituais, imunidades emocionais.
Locusta foi envenenadora profissional em Roma. Ela viveu durante o primeiro século depois de Cristo e ficou conhecida por ingerir pequenas doses de veneno todos os dias para adquirir defesa contra as toxinas que usava. Doses homeopáticas de veneno a protegiam, e ela, por sua vez podia matar sem ser atingida.
A alma humana cria revestimento e os olhos ganham frieza, as palavras, impassibilidade, os atos, automatismo. Entretanto, dessensibilizados, mulheres e homens acabam conspirando contra si mesmos. Seguem como bois no corredor do matadouro, aceitam marchar cabisbaixos rumo ao corte trágico. Anestesiados, consentem com o destino e se entregam à providência.
A noite mal dormida, o almoço requentado, o descaso da burocracia, tudo é absorvido pacificamente. Sem contar com a bestificação da televisiva e a superficialização jornalística que contribuem com a demência generalizada. Pensar passa a ser privilégio e redarguir, virtude rara.
Reina o espírito de manada para que mentes domesticadas repitam clichês. Carreiristas inescrupulosos se aproveitam dos simples. Futriqueiros disseminam boatos. Ímpios manobram detrás dos panos. Banditismo se mistura à benignidade.
A vida só continua porque os processos de assimilação da espécie humana são espantosos
Por que
Por que a noite se arrasta tão longa?
Por que a madrugada se cala silenciosa e fria?
Por que a saúde não contamina feito a doença?
Por que a poesia nasce do sofrimento com mais facilidade?
Por que o coração percebe o que a mente não sabe?
Por que o sonho se dissolve, assim, rapidamente?
Por que a saudade dói sem solução?
Por que o espelho mente para o olhar da solidão?
Por que a morte não respeita a paixão?
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